Bruno Berlendis de Carvalho
Dois palavrões

Escrevi estas linhas uns tempos atrás. Tinham como mola propulsora uns eventos recentes, então. Os eventos passaram — mas não as dinâmicas envolvidas. Por isso, dei-me à liberdade de “reciclar” o texto para reapresentá-lo aqui.

 

A ideia é propor uma reflexão, como profissional da palavra, sobre o uso enviesado e segregacionista que certos termos e expressões têm adquirido na arena pública brasileira.

Boa parte de minha formação humanística contribui para que me tornasse uma pessoa bastante atenta às palavras; aos modos de empregá-las, aos seus contextos, aos interlocutores envolvidos.

O que me levou a escrever esse pequeno texto – um misto de posicionamento e convite ao diálogo – foi justamente o uso surpreendente, para não dizer espantoso, de duas palavrinhas ditas numa entrevista de jornal. Vociferadas com violenta indignação, elas ganharam volume e peso: viraram xingamentos.

 

Vamos ao caso. Novembro de 2014. Pautado pela hipótese de que um perfil do Twitter teria sido falseado para acolher impropérios numa importante denúncia de sexismo no ramo dos gamers, o jornalista da Folha de S. Paulo, Yuri Gonzaga, entrevistou o suposto acusado de tê-lo feito, Mateus Prado Souza. Não vou entrar no mérito de quem fez ou deixou de fazer isto ou aquilo em segredo. Atenho-me às palavras declaradas, aos pronunciamos que se franqueiam à opinião pública. [A matéria encontra-se reproduzida aqui.]

Disse o entrevistado:

“Anita [Sarkeesian] não é apenas feminista, é moralista. O feminismo se torna um problema quando vira moralismo”. 

 

São duas frases curtas, simples e diretas. Qualquer estudante qualificado do Fundamental II saberia analisar sua sintaxe. As frases não oferecem, portanto, nenhuma dificuldade formal em se fazerem entender.

A grande falácia que essas poucas dúzias de letras me parecem esconder é antes de ordem argumentativa e semântica.

Estilisticamente, o primeiro período da declaração poderia ser descrito como frase graduada: um crescendo, digamos. De acordo com essa frase, de algum modo, “ser moralista” é mais do que “ser feminista”. Mais o quê? mais parcial, mais sectário, mais retrógrado? Como quem dissesse: o feminismo é um saco, mas em si mesmo tolerável; só não me venham querer moralizar o debate em nome dele, isto não se admite...

 Do ponto de vista semântico, é de ressaltar que o termo “moralismo” foi aqui usado como índice de um discurso subentendido (como no dito popular: “A bom entendedor, meia palavra basta”).

Nas frases de Prado Souza, as palavras não ditas, isto é, o contexto a que somos evidentemente remetidos, têm a ver com a tão repetida expressão que conjuga a “moral” aos “bons costumes”. Sou o primeiro a admitir que as piores violências foram perpetradas apelando-se a essa categoria de desqualificação.

Isto não tem nada a ver com a argumentação – indefensável porque absurda, e nada mais – de que a moral seja meramente um recalque, uma herança indesejável de que tenhamos de nos livrar para vivermos plenamente o século XXI.

Temos é que negociar, por meio do diálogo e da diferença, quais parâmetros seriam fundamentais, inalienáveis, para vivermos em sociedade hoje, e amanhã. Isso diz muito a respeito dos modelos de sociedade que cada um de nós propõe e projeta, todo dia: na imprensa, na rua, no trabalho, na conversa de esquina.

Distorcer o discurso de defesa do feminismo e de uma possível moralidade para torná-los evidência de juízos depreciativos.... desculpem, nem consigo terminar a frase. 

A moralidade, pra mim, é respeitar o ser humano – seja quem for. Basta isso como primeiro passo (e ele é grande).

 

Vivo, como já se disse, na maior cidade da América do Sul. De trás do volante de meu carro, cruzo com freqüência a Av. Rebouças. Num desses cruzamentos, ladeado de terceirizados “apoio ao trânsito” que nada mais fazem do que observar o movimento, há uma faixa de pedestres que simplesmente ninguém respeita; excessão feita a este que vos escreve. Pra falar a verdade, passando nos últimos anos por ali, vi um ou dois motoristas freando (como faço eu) para os ressabiados transeuntes que se arriscam atravessando a avenida. Ainda assim, conheço pouquíssima gente que, nessa ou noutras conversões equipadas com faixa de pedestre da cidade de São Paulo, freie seu veículo para que um morador de rua possa completar a travessia sem se sentir ameaçado. Para mim, um homeless é um ser humano não menos que a perua dos Jardins o é. Se alguém também pensa assim, se vocês estão aí, por favor apresentem-se, manifestem-se, sejamos amigos.

Não me postulo o paladino da cidadania por conta disso, mas não posso deixar de afirmar e defender meu ponto de vista (nesse e em diversos outros casos, ele até coincide com a legislação vigente).

 

O que se entende por moral, no Brasil de hoje?

Demonizar o motorista, e sistematicamente varar de bicicleta os faróis vermelhos?

Ameaçar formandas em Medicina com a impossibilidade de realizarem residência em hospitais da cidade, caso tenham a pachorra de denunciarem flagrantes e repetidos episódios de assédio e estupro em sua Faculdade?

Blindar espancadores em nome da honra? Ressaltar a centralidade da família e do matrimônio, mesmo quando fazê-lo vira pouco mais que um argumento da hipocrisia – a mais covarde maneira de conciliar as aparências com perversidade?

 

Desculpem, recuso-me a seguir uma cartilha dessas. Mais que isso: seria incoerente considerar a mim mesmo um cidadão e deixar de denunciar a falsidade desse tipo de discurso e conduta.

Se defender a prioridade do pedestre ao atravessar corretamente a faixa é “muita viadice” — como escutei outro dia na Praça Panamericana —, nesse caso, sou viado desde pequenininho, desde a barriga de mamãe.

 

Não nego, também tenho meu lado misantropo. Muitas vezes, além disso, posso ser uma pessoa difícil de se conviver. Mas não estou sozinho nesse planeta, nem queria estar. O nosso mundo só faz sentido com o Outro. Esse (des)encontro pode gerar disputa, mas também diálogo. Prefiro a discordância à guerra, sem sombra de dúvida.

(Exemplo bobo. Tenho uma amigo que não gosta de Rachmaninoff – considera-o exibicionista como um Paganini. Já eu gosto tanto de um quanto de outro — já ouviram as sonatas para violão deste último? E então? Por acaso vou afirmar que ele está enganada, por exemplo recorrendo à minha mais ou menos sólida formação musical? Apelando para tecnicalidades do tipo “mas note-se o jogo de instabilidade do contorno melódico contra o ripieno blablablá”? Bullshit. A vida é curta. A gente devia prestar mais atenção às coisas essenciais, e menos a picuinhas.)

 

Responda rápido, sem pensar: o que é o contrário de moral?



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