A verve do poeta latino Marco Valério Marcial, que viveu sob os impérios de Domiciano, Nerva e Trajano, pouco poupou os seus contemporâneos. Neste epigrama de seu primeiro livro, serve-se de uma cena da arena pública, o espetáculo montado para deleite das elites e das massas – mesmo quando esse espetáculo parece... tão improvável, que nele ninguém acredita.
A capacidade de poupar uma vítima está teatralizada, é espetáculo ela mesma. A falta de vigor dos leões em trucidá-la, como se espera, é aqui satirizada como se correspondesse a um gesto da magnanimidade que emana de César, a figura de máxima autoridade. A ele cabe todo poder e toda decisão – inclusive que uma mera lebrezinha consiga fugir das dentadas de famintos leões, decepcionando um público ávido de sangue.
Sim, tem algo nesse epigrama que me lembra a sociedade brasileira de hoje. (E não: para reconhecê-lo, não é preciso tomar qualquer viés partidário.)
Está no gesto do motorista ao volante do bacanérrimo carro importado que, impaciente com uma espera maior de farol, voa pela contramão num rompante – e que neste mesmo carro ostenta, indefectíveis, os adesivos dizeres “não espere perder um amigo para mudar sua atitude no trânsito”.
Está no gesto do homem indignado com o qual cruzamos no supermercado, senhor dos ajuizados conselhos, que repete incessantemente ao telefone “
Isto é uma falta de vergonha” – ao mesmo tempo que, com prepotência, arremessa seu carrinho de compras contra qualquer pessoa que ouse roçar-lhe o caminho junto às prateleiras. Ele está imbuído de saber e pode ditar as condutas que se esperam da sociedade como um todo. Sua máxima é: Meu pirão primeiro.
Ergo potest.
Topei, por sinal nesse mesmo dia e no mesmo mercado, com um senhor que berrava para o momentaneamente vacante balcão do açougue:
Ninguém aqui vai me atender? ninguém trabalha, aqui?! A viva encarnação do Senhor da Casa-Grande, a “moralizar” uma malemolente Senzala.
Quando se presta atenção a incontáveis pequenos gestos como esses, nota-se que nossa sociedade não consegue se libertar de uma moral um tanto mentirosa, de fachada. Espetacularizada. A serviço de interesses nada democráticos. Que se exibe politicamente correta só até sermos convidados a adentrar a sala de estar.
Por isso, mesmo quando deparamos com uma notícia tão monstruosa como a
revelada pelo The Intercept, de que uma estância turística fluminense ofereceria uma recepção “simuladamente” escravocrata a um público pagante, percebemos um contexto que é compatível com tantas atitudes como as que descrevi poucas linhas acima. Gestos que estamos literalmente cansados de ver, todos os dias, em todas as capitais e localidades mais e menos letradas deste Brasil. A suposta autojustificativa, como quem diz: “não, aqui é tudo teatrinho; não somos racistas e velamos pelos valores democráticos” – isso apenas ilustra e em certa medida explicita uma vocação abusiva, prepotente, que vigora em diferentes setores de nossa sociedade. (E isso, não obstante um frenesi dos mais atuais, não é de hoje. Viva o povo brasileiro.)
Dentre esses setores e agentes, um papel à parte é assumido por nossas diversas elites: econômicas, culturais e por aí vai. E tantas vezes nos revelamos paternalistas no pior dos sentidos, pois nos imaginamos guardiães das verdades cívicas e da reta moral. Vozes que se postulam acima da coletividade.
Certas atitudes no Brasil de hoje e de ontem caracterizam-se, acima de tudo, pela complacência para consigo mesmas. Sabemos com facilidade encontrar, em supostos valores de civilidade como respeito e decência, massagens para nossos egos. Numa palavra, fazemos as pazes conosco quando dadivosamente perdoamos, de nossas mordidas, uma lebre ou peixe pequeno. E assim deturpamos o próprio sentido político da civilidade.