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Os tempos atuais parecem querer ser lembrados como “o século que inventou a roda”. Existe uma ansiedade generalizada para apresentar visões de mundo, de relacionamentos e de negócios que devastem paradigmas, alcançando resultados nunca antes vistos. (Pergunta: e por acaso isso é sempre vantajoso?) Propagar qualquer vínculo com saberes anteriores a dez anos soa antiquado, quadrado, careta. Vamos jogar fora toda uma civilização, porque agora é outra história, dá pra fazer muito melhor. Será?
Pessoalmente, acho que essa obsessão e esses discursos, que nos dias de hoje tendem a ser aceitos e louvados com decrescente capacidade crítica, e se mostram cada vez mais homogêneos, escondem um tácito (e paradoxalmente espalhafatoso) edipismo. Ninguém mais quer ser visto como se fizesse as coisas “como nossos pais”. Perceba-se: a visão de que só na ruptura exista inovação é, no fundo, anti-progressista. Pois progresso supõe desenvolvimento; qualquer etapa de síntese não pode abrir mão das etapas que levaram a ela, mesmo quando as deixa para trás.
Divagando: quem sabe se na “proto-história” dessa voga não poderíamos localizar um antecedente no livro mais conhecido de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, de 1962. Trata-se de um trabalho primoroso desse filósofo da ciência estadunidense. Seu argumento central é que os grandes avanços da ciência na Idade Moderna só se deram em universos conceituais que eram, até seu advento, complemente inauditos, “fora da casinha”. Que as novas visões de mundo emergiram de questionamentos cujos termos mal podiam ser compreendidos para alguém que se ativesse rigidamente à concepção de mundo vigente. Em resumo, que cada revolução científica do último milênio pressupôs uma profunda mudança de paradigmas de base na nossa compreensão do mundo.
Se estamos vivendo algo parecido hoje? Provavelmente. Daqui a um século, não vamos dirigir tão incautos bólidos assassinos pelas ruas, como fazemos agora. Mal podemos imaginar quais serão os impactos da evolução da IA no mundo do trabalho.
Agora, achar que absolutamente tudo, do caldo de galinha aos relacionamentos amorosos, tenha de ser disruptivo e inovador já é indício de uma dose cavalar de ingenuidade. Lembrando: não é porque Copérnico postulou o Sol no centro do sistema planetário e Galileu, as marés como resultado do deslocamento da massa dos oceanos (portanto, da gravidade) que se jogou fora toda a cultura europeia anterior. O advento dessas novas visões de mundo não levou ninguém a queimar livros — que continuam existindo até hoje, e seguirão —, a deixar de fazer poesia, a dançar, a apreciar uma bela paisagem, a procurar pessoas com afinidades e interesses comuns.
É claro que cada um de nós gostaria de se desfazer de heranças nefastas ou improdutivas do passado. No tocante a esses aspectos, livrar-se do legado histórico valeria a pena. Os usos abusivos dos recursos naturais, os preconceitos de diversa espécie, as relações assimétricas de poder, a corrupção, as justificativas pseudo-racionais para discursos de ódio... Para erradicá-los de vez, falta consenso ou sobram interesses de pessoas e grupos que deles se beneficiam (pelo menos no curto prazo). Alguns de nós acreditam que certo protecionismo seria uma salvaguarda para a diversidade dos agentes econômicos, outros são radicalmente contra. Pode-se argumentar até que ponto a impossibilidade de chegarmos a consensos definitivos ajudaria a perpetuar quase primitivamente muitas mazelas na sociedade contemporânea. No entanto, paradoxal seria buscar restringir a liberdade de pensarmos diferente em nome de um “progressismo”. No fim das contas, é preferível convivermos com essa tensão a erradicá-la pela via do pensamento homogêneo.
O elogio exarcebado da inovação a todo preço foi alvo de uma sacada muito divertida que o pôs em questão, vocês devem lembrar. Uns anos atrás, circulou um vídeo com narração em espanhol que apresentava um produto revolucionário: com bateria inesgotável (sem necessidade de recarregar), avançada portabilidade, versátil a ponto de servir de meio a conteúdos educacionais, entretenimento, pesquisa, o escambau. Chamava-se “book”.
Nesses tempos de conhecimentos descontextualizados e experiências de vida fragmentadas, parece que têm sofrido certo descrédito as concepções de mundo e da sociedade que tentam abarcar uma complexidade mais ampla e pontos de vista menos microcósmicos. Ao contrário, quando consideramos nossos professores de décadas nem tão longínquas, ficamos estarrecidos pelo volume de contextos diferentes em que transitavam, não só com desenvoltura, mas principalmente com senso crítico e olhar aguçado (para ficar nas humanidades, e no Brasil, pense-se em figuras como Antonio Candido ou Bento Prado Jr.).
Não tenho a menor pretensão de “pairar acima” do momento histórico em que vivemos, ou de ter a seu respeito uma percepção mais sensível que os demais. Vivo hoje e não quero evitá-lo. Sinto-me, como bilhões de outras pessoas, inserido nessa realidade cultural, mas permeado por uma sensação de estranhamento.
Quando eu era garoto, vindo morar na eletrizante São Paulo dos meados dos anos 1980, o que estava na moda era o “pós-moderno”. Formulavam-se as primeiras tentativas de entender essa nova forma dos saberes e das experiências humanas, profundamente fragmentada, cumulativa, autorreferente e irônica. Falar em Derrida pegava superbem (mesmo que não entendêssemos bulhufas). Eram os anos que disseminaram a prática de samplear instrumentos ao invés de tocar diretamente um.
Eu gostava de usar umas camisas over espalhafatosas da Kaos Brazil – hoje breguíssimas, claro —, estampadas com as figuras mais improváveis que os caras conseguiam imaginar. Uma tinha o padrão branco-e-preto das calçadas públicas com os contornos estilizados do estado de São Paulo; outra ostentava dúzias das chaves e a mitra que são o símbolo do Estado Vaticano. Meu mano mais velho se divertia em me apresentar assim para seus amigos: esse é meu irmão pós-moderno. (Eu adorava, imagina. Captava a atenção daqueles descolados frequentadores da noite paulistana e ainda me sentia totalmente up-to-date.)
Lembrei disso porque outro dia estava conversando com uma amiga sobre música e também sobre essa tendência de descontextualizar e fragmentar os discursos, as experiências e os conhecimentos. Daí me saí com um tirada auto-irônica. Adoro as orquestrações e as harmonias efetivamente revolucionárias de Richard Wagner. Mas, com poucas exceções, não gosto muito de ópera, não é a minha. Ora, praticamente toda a produção dele é operística. De modo que, muito pós-modernamente (ou disruptivamente), posso dizer aos quatro ventos, quase sem corar: pra mim, Wagner é um compositor sem igual de prelúdios.