Bruno Berlendis de Carvalho
Li num filme, vi num livro [parte I]
Já se falou tanto das relações entre cinema e literatura – em alguns casos, tão bem – que insistir no assunto pode ser sinal de ingenuidade, temeridade, ignorância ou uma infeliz confluência de tudo isso.
É comum a gente lembrar daqueles casos-limite, em que o livro parece ser quase uma espécie de ponte, apenas um desbravador de caminhos para outro produto de consumo cultural. A gente tende a focar, então, os elos que amarram o bestseller ao blockbuster, por exemplo. E também vale lembrar que muitos dos filmes de maior bilheteria mundial na última década não existiriam sem seus precursores literários: os heróis de HQ.
Como tantas vezes, é saudável deixar os preconceitos de lado para perceber que não há intrinsecamente nenhum demérito nisso. Há filmes (e livros) para todos os gostos, e é fundamental que haja.
O que não queremos é levar gato por lebre. Respeitada essa ressalva, cada produção cultural tem sua validade, seu lugar, seus públicos. Ninguém entra num McDonald’s com a expectativa de saborear gigot d’agneau. Mais do que isso, e levando a metáfora adiante, o gigot d’agneau não é intrinsecamente melhor do que fast food.
E assim se passa com o livro, que, como toda manifestação cultural, só ganha profundidade e sentido quando relacionado com quem o recebe ou quem o produz.

Agora, já noutra praia, mais além do direito democrático e irrestrito à fruição estética: o que é sim empobrecedor se dá quando um livro não alcança sua autonomia de produto cultural, mas parece ter sido criado com o único propósito de servir a outro senhor, e ser comercialmente explorado dessa maneira. O livro submisso, serviçal da telona, das telinhas, do game. Aí ele dá a impressão de ser apenas uma forma de divulgação, eventualmente até refinada e bacaninha, para outro mercado. A literatura, nesse caso, torna-se não apenas utilitária, como há quem questione estarmos mesmo diante de textos literários.
Vai ver que é daí que surgem os estereótipos, e seus respectivos preconceitos.

Se um livro “se sustenta” por si só, não há o que falar. Estão aí os romances de espionagem de John Le Carré para prová-lo – e servem tanto para um lado da argumentação quanto para outro.
Será que saberíamos relacionar essas diferentes manifestações sem cair nos velhos estereótipos? — “Ah, até que gostei do filme; mas o livro é outra coisa.”
É claro que é; aliás, tem de ser assim. Trata-se de linguagens diferentes. Esperar dos criadores a capacidade de transpor essa barreira como se fosse uma membrana perfeitamente permeável é, no mínimo, reducionista. (Paralelo: toda tradução de poesia, se quer ser também poesia ela mesma, tem de buscar refundar a própria constituição. Só assim terá o potencial de tocar pessoas de língua e referências culturais diferentes.)

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